A
esquerda no mundo, problemas e perspectivas
por Octavio Rodríguez Araujo [*]
Nos últimos anos foi posta uma ênfase especial na sociedade civil , como antes se pusera no proletariado. Contudo, não se trata só de uma substituição do sujeito da mudança e sim, também, de tentar novas estratégias para conseguir mudanças.
Quando se falava do proletariado como sujeito da mudança revolucionária estava-se a falar também de classes sociais, de luta de classes e de exploração. Os trabalhadores assalariados eram produto do capitalismo, mas também suas vítimas mais directas. A luta contra o capitalismo tinha que ser obra desses operários assalariados e de seus aliados (Marx era contra os sectários que pensavam que só os operários eram revolucionários). Algum tempo depois, sobretudo depois de várias lutas sociais na Europa, alguns marxistas chegaram à conclusão de que os operários, pelo mero facto de serem operários, não eram revolucionários. Havia que convertê-los, mediante processos de educação política, em operários conscientes da sua situação no âmbito da luta de classes e nas relações de produção.
Depois das experiências da Primeira Internacional e com a formação dos primeiros partidos políticos modernos da classe operárias, concluiu-se que uma das funções do partido socialdemocrata (como se chamava então) era a educação política da classe operárias, a consciência do seu potencial revolucionário e do seu papel como sujeito de transformação anti-capitalista como meio para a sua libertação como ser humano. Confiava-se, então, no proletariado para criar um mundo melhor, sem exploração, com mais oportunidades para todos e não apenas para uns quantos, sem classes sociais, em suma. E esse mundo melhor e exemplar seria o socialismo.
Até
aí, e continuando com uma exposição forçosamente esquemática, os
anarquistas tinham coincidências com os socialistas. Também aspiravam o
socialismo, mas diferentemente dos marxistas que frisavam a importância dos
operários industriais, os anarquistas mencionavam como sujeito de mudança os
mesmos trabalhadores, os pequenos proprietários (rurais e urbanos), o
lumpenproletariado e outros sectores ou classes sociais, sem levar em conta suas
contradições, sua heterogeneidade (Algo assim como o "anti-poder
indefinido" de John Holloway no seu livro Change the world
without taking power?).
Em
geral, especialmente antes que o reformismo, o revisionismo e o possibilismo
tivessem certo peso nos debates da Segunda Internacional, tanto os marxistas nas
suas diversas correntes como os anarquistas propunham a revolução como estratégia
(táctica, chamavam-lhe) para derrotar a burguesia e seu Estado. Poder-se-ia
dizer que ambas as correntes estavam contra o Estado burguês, com uma ressalva:
os anarquistas pronunciavam-se contra o Estado, como tal, fosse burguês ou não.
Neste
ponto começaram as principais diferenças entre marxistas e anarquistas. Estes
estavam contra a acção política, a organização dos trabalhadores, a existência
de dirigentes e hierarquias, de qualquer forma de governo e, naturalmente, a
existência de qualquer tipo de Estado. Os marxistas, em troca, eram partidários
tanto da acção política dentro do sistema como da acção revolucionárias,
conforme as condições existentes. Além disso, já em finais da década de 70
do século XIX, Marx e Engels apontavam a necessidade de um partido com bases e
dirigentes, com disciplina e aglutinante, na lógica de uma comunidade
teórica com princípios e programa de acção. E, o mais importante,
postulava-se, sobretudo em Marx, a ditadura do proletariado como
uma fase transitória necessária entre o capitalismo e o socialismo, mediante a
qual os trabalhadores poderiam gerar o seu próprio Estado, obviamente diferente
do Estado burguês, para transitar rumo ao socialismo. Esse Estado não seria
socialistas e sim de um novo tipo, e serviria para derrotar em todos os âmbitos
a burguesia ao mesmo tempo em que tentaria educar os trabalhadores numa consciência
socialista, num ser humano novo.
Para
Marx, sobretudo depois da experiência da Comuna, sua concepção da ditadura do
proletariado e do Estado teve maiores precisões. A respeito da primeira (ditadura
do proletariado), a expressão "ditadura" não se entendia linearmente
como oposta à democracia nem como forma de governo, e sim como o poder social
de uma classe majoritária sobre a minoritária que antes exercia o poder. Dessa
forma a expressão ditadura do proletariado, associada ao conceito de Estado, já
não era a do Manifesto : uma espécie de centralização
do poder num aparelho, e sim a alavanca de que se serviriam os trabalhadores
"para extirpar os cimentos económicos sobre os quais repousa a existência
das classes e, consequentemente, a dominação de classe [...] transformando os
meios de produção em simples instrumentos de trabalho livre e associado".
Ou seja, uma forma estatal transitória, híbrida e em processo de mudança,
como bem o assinalou Roux. Se o Estado e as formas políticas em geral eram
entendidas por Marx em função de relações sociais, resultaria evidente que
ao mudarem estas teriam que sofrer mudanças tanto o Estado como as formas políticas
em geral. Se, como destacou Mandel, na transição do capitalismo ao socialismo
não se elimina de todo a produção mercantil, a mudança da força de trabalho
por um salário estritamente limitado e calculado, a obrigação económica desta
mudança e a divisão do trabalho, entre outros factores, parece lógico pensar
que o Estado da transição não será nem capitalista nem socialista, e sim um
híbrido diferenciado que terá de resolver-se pela situação dominante
precedente ou por aquela a que se aspira a partir de uma revolução social. Já
vimos, empiricamente, que essa situação transitória, que os publicistas da
URSS davam por finda desde os anos 70, acabou por resolver-se, duas décadas
depois, pela volta ao capitalismo e que o Estado foi adequado nesta nova
circunstância sem grandes complicações. Ficou claro que a distorção que
sofreu a "ditadura do proletariado", sobretudo a partir de Stalin,
dava razão a Bakunin quando este prognosticava que uma ditadura do proletariado
terminaria por ser uma ditadura contra o próprio proletariado. "Enquanto...
o poder político exista - escrevia Bakunin -, haverá governantes e governados,
amos e escravos, explorados e exploradores. Uma vez suprimido, o poderia político
deveria ser substituído pela organização das forças produtivas e pelo serviço
económico".
A
força da sua primeira afirmação confirma-se pela existência da União Soviética
e de outros países nos quais, em nome da ditadura do proletariado, o governo
deste foi substituído pelo governo de um partido não democrático, e mais por
um partido, pela sua direcção (ainda menos democrática). Mas a força dessa
primeira afirmação enfraquece-se quando diz que o poder político deve ser
substituído pela organização das forças produtivas e o serviço económico,
sem governo algum. E aqui interessa destacar no discurso anarquista a presença
da ideia de que os seres humanos, inclusive os consagrados trabalhadores como
sujeitos históricos da revolução socialista, sejam capazes de renovar-se
radicalmente ou de chegar a ser como os imaginaram sem nenhuma base de realidade
pessoas confiáveis, não mesquinhas nem cobiçosas e capazes de organizar-se em
comunidades auto-gestionárias e livres sempre e quando não exista governo,
poder político, Estado. Esta situação nunca se verificou, nem sequer nas
comunidades zapatistas em Chiapas ou nas comunidades Amish e Meconitas dos
Estados Unidos, Canadá e México, onde reconhecem líderes e hierarquias apesar
da sua suposta horizontalidade.
E
neste ponto regressamos ao conceito de sociedade civil e, sobretudo, à ênfase
que ultimamente tem sido posta nela e nas suas hipotéticas capacidades para
transformar o estado de coisas sem tomar o poder. No discurso zapatista
recupera-se este tema, razão pela qual Marcos, em entrevista com Julio Scherer
( Proceso , 11/03/02), declarava-se rebelde social e não
revolucionário, pois os revolucionários, dizia, postulavam transformar as
coisas a partir de cima, depois de tomar o poder, e os rebeldes a partir de
baixo, sem tomar o poder. Diga-se a propósito que Marx criticava severamente
esta posição, pois não se tratava de tomar o poder e já, e sim de destruir o
poder da burguesia a partir do próprio poder, mediante uma ditadura do
proletariado e, portanto, mediante a criação e a utilização de um novo
Estado, como já vimos, por ser o Estado resultado de uma relação e não uma
entidade à margem da sociedade e dos interesses dominantes num momento dado.
Pelo mesmo, por sua renúncia a levar em conta positivamente os partidos (que
por definição aspiram o poder), quando se estava a tentar a construir a Frente
Zapatista de Libertação Nacional recomendou-se não incluir os membros dos
partidos mas sim os pequenos empresários. Nas discussões fui daqueles que
argumentaram que estes, os pequenos empresários, tinham trabalhadores aos quais
frequentemente eram escamoteados até o pagamento do salários mínimo e várias
exigências, como a inscrição na Segurança Social, enquanto nos partidos,
sobretudo no da Revolução Democrática, participavam muitas das pessoas que
haviam estado a apoiar o EZLN. Mas esses argumentos não foram aceites, os
exploradores e os explorados, juntos, podiam fazer parte da FZLN, não os
membros dos partidos. Assim paradoxal era a colocação zapatista naqueles
momentos, talvez por um afã de privilegiar a sociedade civil sem se importar
com a sua heterogeneidade nem com as suas contradições. De maneira semelhante,
um sector importante das novas esquerdas anti-globalização trata de excluir os
partidos mas não aceita analisar a composição da sociedade civil a que tanto
se refere nos seus discursos, nem muito menos reconhecer as diferenças entre as
classes sociais, conceito que, certamente, não compartilham muitos dos
movimentos contrários à globalização neoliberal.
A
ênfase na sociedade civil e a relativa recusa dos partidos e da política
traduziu-se na defesa absoluta dos movimentos sociais, do movimentismo ou
daquilo que Marx chamava comunidades de acção nas quais
não era possível, sem riscos de desunião, definir um programa de acção ou
metas finais pelas quais lutar para além de conjunturas específicas.
Alguns defensores do movimentismo recorreram, fora do contexto, a uma frase de Marx de 1875, que dizia: "cada passo de movimento real vale mais que uma dezena de programas". Esta expressão referia-se precisamente à sua Crítica do Programa de Gotha, programa entre correntes contraditórias e irreconciliáveis que, além disso, tiveram de formar uma comunidade de acção, "concertar um acordo para a acção contra o inimigo comum". O máximo que Marx concedia a este respeito foi expresso com toda clareza numa carta a Engels em 1869. Nesta carta Marx dizia: "A comunidade de acção que fez nascer a Associação Internacional dos Trabalhadores (Primeira Internacional), o intercâmbio de ideias mediante os diferentes organismo das secções em todos os países e, finalmente, as discussões directas nos congressos gerais, também criarão gradualmente o programa teórico comum do movimento operário geral". Ou seja, Marx não descartava que de uma comunidade de acção pudesse afinal surgir um programa teórico comum do movimento dos trabalhadores, mas com isto não ignorava a necessidade do referido programa nem de um fim último acordado como estímulo e orientação da luta revolucionária.
Dos Foros de Porto Alegre, e de outros que se têm organizado poderia, como hipótese, surgir um programa e um objectivo comum. Entretanto, subsiste um grande problema: a heterogeneidade social e ideológica dos participantes e dos movimentos e interesses que representam. Estas diferenças já se expressaram nesses foros, entre os que participaram nos seminários (representantes de ONGs e de movimento sociais não organizados, como algumas excepções) e aqueles que o fizeram nas conferências centrais (intelectuais e líderes de opinião, criticados pelos outros e inclusive tachados de reformistas). Além disso, e segundo a informação oficial do Segundo Foro Social Mundial de Porto Alegre, de cerca de 700 seminários que se instalaram a partir de intervenções registadas, um pouco mais de 60 por cento foram apresentadas por brasileiros, somente dois por cento desses seminários foram voltados para o socialismo, como estudo ou como perspectiva. O resto dos temas foi muito variado: desde a interpretação dos sonhos ou o esperanto como instrumento de promoção da paz (a sério) até o exame da crise do capitalismo e a perspectiva de uma nova ordem mundial. Assim, torna-se óbvio que não se obtiveram resoluções nem acordos importantes, e que se tratou na realidade de um encontro. Nos seminários, por outro lado, o objectivo foi "permitir a identificação, elaboração e aprofundamento de temas específicos, mais que promover o debate público e a socialização de estratégias para a construção de um novo mundo", segundo foi explicado pelos organizadores. Estes, os organizadores, tinham muito claro - sem dúvida - que o debate, o intercâmbio de ideias - diria Marx -, assim como a socialização de estratégias para a construção de um novo mundo (ainda não definido), levaria à desunião, à diferenciação ideológica, à diminuição probabilística de uma nova força organizada ou de um contrapoder para enfrentar o imenso poder do capital e dos governos que lhe abrem caminho e lhe servem de apoio para o seu domínio cada vez maior.
Talvez o balanço mais objectivo dos participantes de Porto Alegre tenha sido o de Inmanuel Wallerstein: "... Porto Alegre - disse - é uma coalizão muito flexível de movimentos transnacionais, nacionais e locais, com múltiplas prioridades unidas primordialmente na sua oposição à ordem mundial neoliberal. E estes movimentos, na sua maioria, não estão em busca do poder do Estado, e se estiverem a buscá-lo, fazem-no partindo do princípio de que esta é apenas uma táctica entre outras, mas não a mais importante". Contudo, "a falta de centralização pode tornar difícil coordenar tácticas para as batalhas mais duras que restam pela frente. E teremos que ver também que tão grande é a tolerância para com todos os interesses que se representam, a tolerância para com as prioridades de uns e de outros. E se alcançar o poder a partir da estrutura do Estado já não é o objectivo primordial, então qual é ele? Até agora as forças de Porto Alegre lutaram, sobretudo, batalhas defensivas: impedir às forças de Davos que cumprissem a sua agenda. Isto é importante, útil, e teve mais êxito do muitos previam há alguns anos. Mas será preciso adoptar uma agenda série e positiva. O imposto Tobin (para combater a especulação nos fluxos de capital), eliminar a fórmula do imposto sobre a habitação, cancelar a dívida dos países do Terceiro Mundo são todas propostas úteis, mas nenhuma é suficiente para mudar a estrutura fundamental do sistema-mundo". E, finalmente, Wallerstein assinou que "em certo sentido, o mundo está novamente onde estava em meados do século XIX, mas tem uma vantagem: conta com a experiência e a aprendizagem a partir dos erros dos últimos 150 anos". A questão, acrescento, é assimilar essa experiência e entender esses erros, conhecer esse passado e evitar na medida do possível cair no expediente fácil de conceder aos membros da sociedade, à chamada sociedade civil, atributos que na vida prática e quotidiana, para além de certas conjunturas, são negados.
Falar das perspectivas da esquerda, ou melhor, das esquerdas, obriga-nos a não confundir o wishful thinking com a realidade, ou seja, acreditar que a realidade é aquilo que alguém quer que seja não aquilo que é. Opor-se à globalização neoliberal não é atributo exclusivo da esquerda, a ultradireita da Áustria e da França também se opõe, os sinarquistas no México também (recorde-se sua proposta de um país de pequenos proprietários). Penso que Kolakowski tinha razão quando sugeria entender a esquerda não só pela negação do existente como também pela direcção desta negação, pois obviamente nem todo movimento que negue o existente é de esquerda, como não o foi o hitlerismo em relação à república de Weimar. Em boa parte das esquerdas actuais há certamente oposição ao existente, mas faltam as propostas e o como poderiam ser alcançadas. Assim estamos, oxalá avancemos.
Casa
Lamm, 11 de Outubro de 2002
[*] Colaborador de La Jornada
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